Todo mundo tem um borrão na
alma.
Não importa o passado que tenha tido, há sempre um pedaço rabiscado,
mal feito, cheio de sombras.
Eu estava lá quando mancharam a alma da menina.
O nome dela?
Sara.
Sara tem um sobrenome que não lembro, não é de família importante.
Também não é ’Silva’.
Aconteceu numa tarde em que o sol e o frio disputavam o mesmo espaço.
O ano era mil novecentos e alguma coisa, não lembro bem.
Alias, não lembro de um monte de coisa e por esse motivo este texto será cheio
de ‘não sei’.
A menina estudava no mesmo andar da biblioteca.
Triiiimmmmmmmm _ tocou o sinal.
Irritante, por sinal!
Detestava aquele som agudo mais do que detestava os números!!!
O chão era de madeira, madeira velha, coisa de escola centenária.
Ouvia uma multidão de passos apressados, passos e mais passos,
todos juntos.
Guardei o livro para descer.
Entre a escada e a biblioteca, estava a classe de Sara.
Pobre Sara.
A pequena multidão com cadernos nas mãos desaceleraram os passos.
Ouvia risos abafados e olhares de cumplicidade entre eles.
Algo estava para acontecer.
A gente percebe quando há um ar de ‘coisa nova por acontecer’ ,
ainda mais no colégio, onde essas coisas ficam ainda mais grossas e ásperas que
o normal.
Me fiz mistura entre eles.
O local onde a pequena multidão se instalara era em frente à sala de Sara.
-O que havia ali, afinal?_questionava-me.
Quase todos da sala saíram, menos quem a pequena multidão queria.
Esperaram.
Esperaram um pouco só, menos de um minuto e meio.
Não estou bem certa se o tempo foi esse, nessas horas a alma da gente
não sabe contar.
-Sara! Sara! Tem gente querendo falar com você!!! _disse uma moça feia de olhos
azuis.
Sim, era feia, apesar dos olhos azuis.
Apareceu Sara.
-Sara?! Sara não é nome de princesa? Quem teve coragem
de dar esse nome a essa menina? Céus!!! _exclamei na
alma.
Era muito contraste!
O nome e a menina.
Sara não era apenas feia, era também muito desengonçada.
Seus cabelos eram longos e ondulados, seriam perfeitos se não fossem tão
armados.
Tinha olheiras arroxeadas em volta dos olhos, sorte dela que tinha olhos
claros, afinal, a natureza também tem suas atitudes de misericórdia.
E por fim, era gorda.
GOR-DA!
Engraçado como essa palavra parece palavrão, né?
Quando a gente fala ela, da impressão de ter cometido pecado.
Sara chegou com um sorriso no rosto.
Um daqueles sorrisos que a gente,
entrega de presente a um amigo.
Dezenas de olhos sobre a menina.
A pequena multidão não disfarçou, encarou Sara como se quisesse devorar toda
alegria que ela possuía.
Sara guardou o sorriso no bolso e deslizou os olhos entre aqueles que a
rodeavam.
Os olhos de Sara gritavam por resposta.
Silêncio.
Pequenos estalos de risos contidos.
Ela era a piada, mas qual piada?
Ninguém a contara ainda.
Surgiu da pequena multidão um moço.
Vou descrevê-lo, embora a lembrança de sua atitude me causenáuseas.
Alto, cabelo escorrido.
Olhos castanhos, cabelo escorrido.
Lábios finos, cabelo escorrido.
Tinha cabelo escorrido e ar de quem gostava de maldade.
Desculpe a redundância na descrição,
mas foi assim que minha alma o fotografou.
Os olhos dele passaram pela pequena multidão sorrindo e pedindo atenção.
Silêncio de novo.
De alguma maneira todos sabiam que era para fazer silêncio,
o menino de cabelo escorrido iria falar.
Aqueles olhos castanhos do menino caíram sobre a pequena Sara deslizando do
rosto para o pescoço, barriga, quadril, até chegar aos pés e fez,
vagarosamente, o caminho de retorno.
Naquele momento tudo que se ouvia era
o silêncio e o coração de Sara.
Tum tum. Tum tum. Tum tum.
O menino do cabelo escorrido quebrou o silêncio,
como quem quebrara um ovo a marteladas.
-Sara? É este teu nome? Já sabes o quanto és feia?! _ disse o menino rindo-se.
Sara manteve seus olhos sobre ele, não recuou o olhar, nem tão pouco corou sua
face.
Correu os olhos pela pequena multidão.
Um a um, até todos saírem.
A pequena multidão saiu rindo, feliz.
A alegria contida na tristeza 'do outro' nunca fora tão
visível para mim.
-Que culpa Sara tem de ser feia?! _perguntei para a Vida.
Não tive resposta.
A Vida sempre deixa as perguntas mais difíceis sem resposta.
Aquela tarde se partiu, e outras tardes também,
mas a imagem de Sara não.
Não a encontrei pelos corredores, nem na biblioteca.
Não a via em lugar algum.
A vi depois de três meses, no banheiro.
Seu cabelo armado estava preso no alto da cabeça e seus olhos estavam fixos em
suas próprias mãos enquanto as lavava.
Em nenhum momento Sara se olhou no espelho.
Quando ergueu os olhos notei que eram os mesmos.
Nem altos,
nem baixos.
Olhar de quem desconfia da vida mas que esta disposta a arriscar.
-Como pode? Sara encarava a vida, o desconhecido e a ironia,
mas não ousava olhar-se no espelho?
-Aposto que nem sabe a cor que seus olhos tem! _pensei
Ao passar por mim Sara sorriu:
-Boa tarde._disse ela.
E seguiu rumo à porta.
Queria lhe dizer milhões de coisas.
Pedir perdão por estar na 'pequena multidão'.
Dizer a ela para não se importar com as palavras do menino de cabelo escorrido.
Mas não disse.
Quando Sara estava abrindo a porta a única coisa que saiu foi:
-Moça! _disse eu no mesmo tempo em que pensava no que iria dizer
depois disso.
Ela se voltou para mim e respondeu com um sorriso:
-Oi?-Queria te pedir perdão eu estava lá quand...
-Eu sei, eu a vi, tudo bem..._respondeu ela com um sorriso de quem conhece o
perdão.
-Lizzie. Meu nome é Lizzie.
-Sara, prazer._respondeu com sorriso nos olhos.
Éramos estranhas e ao mesmo tempo tão iguais.
Existem coisas na vida que a gente não explica.
-Tenho que ir, Lizzie, boa aula para você.
-Sara!
-Oi?
-Você tem um sorriso lindo!_disse com sinceridade.
-Obrigada._sorriu como quem não está acostumada com elogios.

Ela parecia reagir com mais naturalidade a um insulto do que a um elogio.
Havia um abismo de distancia entre nós, mas éramos feitas do mesmo material.
Conhecer Sara foi um aprendizado, foi ela
quem me ensinou que
é preciso encarar a vida mesmo quando se tem manchas imensas na
alma.
"Perto está o Senhor dos que tem o coração quebrantado." Sl 34:18
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Luciana Leitão
5 comentários:
Lindo texto.
Nuuu! *-*
Curti muito o texto, demais mesmo.
E sim "é preciso encarar a vida mesmo quando se tem manchas imensas na alma."
Com Jesus no barco nós vamos seguindo para o Alvo.
Amei mesmo o texto.
Bjinhos
Amei.
Gostei muito do texto! Parabéns! =D
Ah Lu, seja bem-vinda!
Será um prazer leu seus textos aqui no blog! :D
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